São João.
A minha mãe não
era de todo uma mulher que gostasse de festas. Preferia ouvir um bom fado ou
ver um filme português, de preferência com Amália, mas para fazer a vontade ao
meu pai, todos os anos ela fazia a ceia de São João no quintal de lá de casa.
Ponha balões e enfeitava a rigor, sem música, é claro. Vinha uma mesa grande
para a rua, a minha mãe cozia atum, semilhas com casca, pimpinela, feijão e
massarocas.
Mesmo depois da
doença da mãe voltamos sempre a festejar o São João, à excepção deste ano porque
a minha irmã mais velha (a festeira da família), não está cá.
Fazíamos
fogueiras no quintal e no beco, eu gostava de ver o lume e de saltar. A vizinha
do lado, quando estava bem-disposta vinha lá a casa para tirar sortes e
escolher o namorado e o homem da nossa vida. Na noite de 23 para 24 escrevia-se
vários nomes em pedaços de papel e colocava-se dobrado em quatro num prato
fundo com água. No dia seguinte o papel que amanhecesse aberto indicava o nome
do nosso amor.
As vizinhas
frequentavam com regularidade a nossa casa, era mesmo a casa do lado e tinha
uma ligação interna para as duas casas. Residiam numa casa demasiada grande
para elas, com um quintal e fazenda. Vivia a mãe e duas filhas solteiras. O pai
das raparigas tinha emigrado há muitos anos para a cidade do Cabo, e não mais
tinha voltado. Ninguém comentava, mas ele teria constituído outra família por lá.
Elas tinham também um irmão em comum, que ficou vivendo com o pai. A mãe era a
matriarca da família, era uma senhora rigorosa, e exigente, mas também não era
fácil educar e lidar com as duas raparigas, que não eram propriamente amigas
uma da outra e com uns certos desvios de personalidade, aliás a mais nova, era
um pouco mais lerda. A minha mãe e as minhas irmãs serviam de juízes e de
árbitros nas querelas das duas. A vizinha desabafava muito com a minha mãe e
lamentava a triste sina que tinha com as raparigas. Nunca se sabia ao certo
qual delas estava de bom humor, dependia do estado de espírito, ora falavam,
ora amuavam e nada diziam e a mãe vinha constantemente desculpar-se pelas
atitudes irreflectidas das filhas.
Eu e o meu
irmão, como éramos mais novos e tínhamos delas uma diferença de idades muito
grande, gozávamos a situação e fazíamos partidas. Escondíamo-nos no quintal e
começávamos a chamar o nome “Vizinha, vizinha, temos um recado para si”, quando
apareciam dizíamos dependendo de qual das duas era, dizíamos “Valéria, puta aérea”, Celeste raio da peste”. Muitas vezes
ficamos de castigo e a mãe delas vinha fazer queixa de nós.
Quando as duas
irmãs se zangavam uma não podia saber da vida da outra, batiam à campainha da
nossa porta para entrar pelo nosso quintal e seguir a ligação para a casa delas,
vinham pedir para usar o nosso telefone para falar à vontade sem ninguém ouvir
a conversa, e vinham se sentar no xadrez para lerem o Diário de Noticias às
escondidas (uma delas era muito beata e só lia o Jornal da Madeira).
A vizinha tinha
uma casa e fazenda em São João e eu lembro-me de uma vez ir lá a uma festa no
largo, com uma fogueira muito grande no meio da rua, e as pessoas estavam todas
á porta das casas.
A Vizinha,
coitada, sofreu muito com aquelas duas filhas, solteiras, descompensadas, que
não foram em nada beneficiadas por qualquer beleza física, uma somítica, muito
beata e culta, outra menos letrada, pobre diabo, sempre à espera de uma boa
conversa.
A casa há uns anos foi vendida, depois da
morte da mãe, hoje é um bloco de apartamentos. Suponho que as duas ainda são
vivas, viviam juntas num apartamento para os lados de Santo António e a irmã esporadicamente
vai a uma instituição de saúde mental.
Uma vez
encontrei a mais velha numa rua do Funchal, mas fiquei com dúvidas, não sei se
ela fingiu que não me viu ou não quis falar comigo. De qualquer maneira eu que
não tinha a minha consciência muito tranquila, não me atrevi a cumprimentar e
não mais vi ninguém.
Do São João,
resta-me recordar as ceias no quintal da minha casa, as fogueiras, as vizinhas,
as sortes e o nome do homem por quem me iria apaixonar.
23-06-15