terça-feira, 23 de junho de 2015

São João



São João.
A minha mãe não era de todo uma mulher que gostasse de festas. Preferia ouvir um bom fado ou ver um filme português, de preferência com Amália, mas para fazer a vontade ao meu pai, todos os anos ela fazia a ceia de São João no quintal de lá de casa. Ponha balões e enfeitava a rigor, sem música, é claro. Vinha uma mesa grande para a rua, a minha mãe cozia atum, semilhas com casca, pimpinela, feijão e massarocas.
Mesmo depois da doença da mãe voltamos sempre a festejar o São João, à excepção deste ano porque a minha irmã mais velha (a festeira da família), não está cá.
Fazíamos fogueiras no quintal e no beco, eu gostava de ver o lume e de saltar. A vizinha do lado, quando estava bem-disposta vinha lá a casa para tirar sortes e escolher o namorado e o homem da nossa vida. Na noite de 23 para 24 escrevia-se vários nomes em pedaços de papel e colocava-se dobrado em quatro num prato fundo com água. No dia seguinte o papel que amanhecesse aberto indicava o nome do nosso amor.
As vizinhas frequentavam com regularidade a nossa casa, era mesmo a casa do lado e tinha uma ligação interna para as duas casas. Residiam numa casa demasiada grande para elas, com um quintal e fazenda. Vivia a mãe e duas filhas solteiras. O pai das raparigas tinha emigrado há muitos anos para a cidade do Cabo, e não mais tinha voltado. Ninguém comentava, mas ele teria constituído outra família por lá. Elas tinham também um irmão em comum, que ficou vivendo com o pai. A mãe era a matriarca da família, era uma senhora rigorosa, e exigente, mas também não era fácil educar e lidar com as duas raparigas, que não eram propriamente amigas uma da outra e com uns certos desvios de personalidade, aliás a mais nova, era um pouco mais lerda. A minha mãe e as minhas irmãs serviam de juízes e de árbitros nas querelas das duas. A vizinha desabafava muito com a minha mãe e lamentava a triste sina que tinha com as raparigas. Nunca se sabia ao certo qual delas estava de bom humor, dependia do estado de espírito, ora falavam, ora amuavam e nada diziam e a mãe vinha constantemente desculpar-se pelas atitudes irreflectidas das filhas.
Eu e o meu irmão, como éramos mais novos e tínhamos delas uma diferença de idades muito grande, gozávamos a situação e fazíamos partidas. Escondíamo-nos no quintal e começávamos a chamar o nome “Vizinha, vizinha, temos um recado para si”, quando apareciam dizíamos dependendo de qual das duas era, dizíamos “Valéria, puta aérea”, Celeste raio da peste”. Muitas vezes ficamos de castigo e a mãe delas vinha fazer queixa de nós.
Quando as duas irmãs se zangavam uma não podia saber da vida da outra, batiam à campainha da nossa porta para entrar pelo nosso quintal e seguir a ligação para a casa delas, vinham pedir para usar o nosso telefone para falar à vontade sem ninguém ouvir a conversa, e vinham se sentar no xadrez para lerem o Diário de Noticias às escondidas (uma delas era muito beata e só lia o Jornal da Madeira).
A vizinha tinha uma casa e fazenda em São João e eu lembro-me de uma vez ir lá a uma festa no largo, com uma fogueira muito grande no meio da rua, e as pessoas estavam todas á porta das casas.
A Vizinha, coitada, sofreu muito com aquelas duas filhas, solteiras, descompensadas, que não foram em nada beneficiadas por qualquer beleza física, uma somítica, muito beata e culta, outra menos letrada, pobre diabo, sempre à espera de uma boa conversa.
 A casa há uns anos foi vendida, depois da morte da mãe, hoje é um bloco de apartamentos. Suponho que as duas ainda são vivas, viviam juntas num apartamento para os lados de Santo António e a irmã esporadicamente vai a uma instituição de saúde mental.
Uma vez encontrei a mais velha numa rua do Funchal, mas fiquei com dúvidas, não sei se ela fingiu que não me viu ou não quis falar comigo. De qualquer maneira eu que não tinha a minha consciência muito tranquila, não me atrevi a cumprimentar e não mais vi ninguém.
Do São João, resta-me recordar as ceias no quintal da minha casa, as fogueiras, as vizinhas, as sortes e o nome do homem por quem me iria apaixonar.

23-06-15


quarta-feira, 17 de junho de 2015

Levadas, regadios, águas e poços.



Levadas, regadios, águas e poços.
Andava eu ensimesmada nos santos populares e a recordar os tempos de estudante e as escapadelas a Alfama e à Mouraria com o meu primo e umas quantas amigas da época quando dei por mim a fazer a Levada dos Brasileiros terminando com um almoço de semilhas, atum sal-presado, feijão e massarocas. É óbvio que não substitui a sardinha assada, a salada de pimentos e os manjericos, mas na verdade, aqui nesta terra, nunca foi hábito comemorar o Santo António, sempre foi mais tradicional celebrar o São João, pelo menos era assim na minha família.
Andamos pela zona alta do Porto Moniz (Levada do Brasileiro), Lagoa do Chão do Bardo, Pico Roseira, Portas da Vila e Monte Pico. Curiosamente apanhamos um dia de céu azul, e sol, límpido, como muito raramente acontece ali pelos lados da Santa.
Estas caminhadas para além de se terem tornado num espaço de “desintoxicação citadina” passaram a contemplar outras áreas, tais como aulas práticas de botânica, cultura local, usos e costumes, momentos de bem-estar e prazer e de conversas de enriquecimento intelectual.
Eu que não distinguia orégãos de carqueja, já vou conhecendo algumas plantas aromáticas, flores e algumas árvores que compõem a nossa Laurissilva.
Conhecem-se pessoas novas, agradáveis, simpáticas, gente descontraída e desempoeirada.
A propósito neste sábado entabulei uma conversa interessante com um rapaz, que aos 11 anos foi estudar para o seminário e frequentou até o 4 ano de Teologia, depois considerou ser mais importante saltar o muro e ficar a viver a vida deste lado de fora e por aqui ficou até agora. Falamos muito ao de leve da religião, da fé, da igreja, dos mitos da igreja católica, e em especial de algumas posições tomadas pelos órgãos máximos da igreja aqui na região, etc, etc.
Alarguei os meus parcos conhecimentos sobre o sistema de regadio, os tanques de rega, a divisão da água e o giro.
A constituição geológica e a topografia da Ilha não favorecem a constituição de reservas superficiais de água. Não existem muitas lagoas naturais e as águas da chuva ecoam rapidamente para o mar.
Desde sempre a gestão da água, o decorrer do giro, gerou conflitos e disputas entre os agricultores, regantes e levadeiros. O desvio intencional e o roubo de água constitui um ofensa e mexe demasiado com os valores e a integridade de quem trabalha a terra e dela vive, e dela faz o seu rendimento, e dela alimenta a sua família. Por isso colocava-se um pau ou uma vara pequena entre as duas margens da levada, justamente para balizar a divisão da água e para determinar com precisão a quantidade de água que cabia a cada um nas horas de giro. Quando o nível da água subia além da marcação estabelecida pela vara era sinal de que alguém estava roubando água. O nível da água teria de se manter sempre pela baliza/vara. Então a regra era, “enquanto uns regavam outros vigiavam”.
Ali pela aquela zona da Santa do Porto Moniz (e áreas circundantes, Pombais, Cabo Salão, Pico Alto, etc.) existem cerca de 48 poços com 2, 3 ou mais donos, cada um com uma corrente de água diferente. O balaruco é o sítio por onde sai a água do poço e os tornadoiros é o encontro de levadas (onde partem e se dividem as águas).
A posse de poços dava então aos agricultores uma capacidade de prestígio, criava rivalidade e competição entre todos os que dependiam da terra e precisavam da água como um bem de mercado e com um preço alto.
Passei também por uma plantação de amendoins, é uma planta herbácea, de caule pequeno, com flores pequenas e amarelas. O fruto é uma vagem.
No regresso demos um salto até à Casa Velha, uma casa pequena, toda em pedra, mas com uma confortável área de terreno na parte lateral e traseira. A casa precisa de obras e restauro, aguarda por alguma folga financeira do seu proprietário ou por alguma boa ação de um qualquer mecenas em prol das tradições e reconstruções rurais. Tem um forno peculiar, a porta de entrada é quadrada em vez da habitual que é oval, o chão ainda é de terra batida e tem um pouco de tudo o que é tradicional madeirense, uma camilha, candeeiros a petróleo, recipiente em madeira para fazer pão de casa, etc, etc.
Já mesmo sem estar à espera ainda visitamos o “Tribunal Bar”, um tasco junto à Câmara Municipal, onde se acaba por decidir o que não foi consensual na reunião que decorreu no edifício do lado.
Ainda fiquei a saber que em dias como aquele em que o mar está tão calmo, pescam-se cracas no Ilhéu Mole (frente à Vila do Porto Moniz), eu que até então imaginava que cracas, só nos mares dos Açores.
18-06-15



terça-feira, 9 de junho de 2015

Dois Mundos



Dois mundos,
Eram aproximadamente 20h30m de um primeiro sábado do mês de Junho, vinha a passar nas traseiras do Mercado dos Lavradores e deparo-me com uma fila de gente, maioritariamente homens, de cabelos grisalhos, barba por fazer, roupa desconjuntada, rostos amargurados e olhares turvos. Em fila aguardavam estoicamente a refeição quente que lhes seria servida pelos voluntários da CASA, um gesto de solidariedade social apoiado pelos Hotéis Porto Bay e Dorisol.
Mais à frente, na porta principal do mercado, à entrada outra fila, desta feita para uma Ceia dos Santos Populares (angariação de fundos para o projecto “Ferias Divertidas”).
Dois mundos, dois eventos, causas idênticas (solidariedade social), mas na sua essência bem diferentes uma da outra.
Gosto daquele acontecimento, descontraído, de arraial, comida típica da época (atum salpresado, semilhas com casca, batata doce, feijão e maçarocas), da cor, da boa disposição e do ar despretensioso das pessoas.
Acabei por encontrar um vizinho amigo, irmão de uma amiga da minha infância. Veio cumprimentar-me, e felicitou-me pelos textos que tenho andado a escrevinhar, disse que os tem lido e gosta imenso. Sei que passou por uma grande perda, recentemente, mas achei que não era oportuno referenciar o assunto e nada disse. Afinal o ambiente era de festa e descontração.
Lembrei-me da mãe dele, minha vizinha, uma senhora que teimosamente fez durante muitos anos uma resistência à vida, acamada durante algum tempo, foi adiando a sua partida, para surpresa, até da própria família. Uma força da natureza, matriarca, mãe de 11 filhos, exigente, e lutadora.
No dia do meu casamento, bateu-me à porta para me dar parabéns e oferecer-me uns versos feitos por si e um raminho de cravos. Foi um gesto simbólico que nunca esqueci.
Hoje, a casa da senhora encontra-se à venda e inexplicavelmente no quintal existe ainda um roseiral. Curiosamente estou a falar de uma casa semiabandonada onde não reside ninguém à uma data de anos. A paixão pelas flores, rosas, cravos, azáleas, orquídeas e outros vasos que ela disponha pelas escadas acima era notória.
O jantar esteve animado, com uma banda de música, um grupo de música tradicional, uma fadista e dois adolescentes, que apesar de muito novos prometem um bom trajecto pelo meio musical.
Na saída, esperava-me uma noite cálida e uma cidade deserta, desci até ao parque de estacionamento do Almirante Reis e deparei-me com mais uma cena de um qualquer submundo, um jovem, toxidependente a ser corrido fora do parque pelo responsável do mesmo.
Cambaleando de um lado a outro, exibindo uma verborreia gritante, uma mão segurava as calças roçadas que lhe vinham já entre pernas e a outra mão agarrava uma garrafa de um etílico sem rótulo e lá se foi ajeitando para um canto de uma parede cuspida com uma tinta descolorida e bolorenta, ainda olhando de soslaio para trás  e insultando o rapaz do parque.
Confortavelmente entrei no carro e vim para casa pensando que a vida nem sempre é justa, que o sol brilha e aquece mais uns que outros e que muitos permanecem por um longo tempo na penumbra e na bruma, não existindo nenhuma luz para que possam vislumbrar, mesmo que seja ao fundo de um túnel.

09-06-15

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Amizades de uma vida inteira.



Amizades de uma vida inteira,
Este texto vem a propósito de um telefonema que recebi na semana passada de um grande amigo de infância acerca de uma cronica aqui publicada intitulada “Jasmineiro”. Confesso que no início do telefonema receei e não sabia bem se a receptividade era boa ou má, descontraí de facto quando me apercebi que até tinha sido simpático da minha parte fazê-lo regressar à sua infância e a uma nostalgia de tempos de outrora vividos numa Madeira bem diferente do que hoje é.
Não falava com este amigo há já longo tempo, não que me tivesse zangado, mas pelas circunstâncias da vida, amigos incomuns, trajectórias e estilos de vida diferentes, foram-nos separando.
E aqui vou entrar numa esfera que muita tinta tem corrido e existem varias opiniões, os amigos, as amizades de uma vida e a família. Serão os amigos mais importantes do que a família? Perdoem-me os que não vão concordar comigo, mas a família para mim está em primeiro lugar. Já escrevi em outros textos que, “a família não se escolhe”, “é a que se tem, quer se goste ou não”, os amigos, pelo contrário, escolhem-se e ficamos com eles uma vida inteira, ou vão uns e vêm outros e outros que entretanto se foram, voltam e ficam, outros ainda foram e não regressam mais.
As pessoas zangam-se por futilidades, por o “diz que disse”, porque “quem conta uma história acrescenta um ponto” e por orgulho ferido, por personalidade vincada e acutilante, raramente fazemos as pazes, reconhecermos e voltarmos atrás para invocar um pedido de desculpas é cada vez menos comum.
Ao longo dos anos, quer-me parecer que isto é um processo mais ou menos natural, ganha-se uns, perdem-se outros, mas existem alguns, poucos seguramente, que nunca se perdem, nem tão pouco se esquecem.
Eu não sou propriamente a pessoa mais pacífica deste mundo, e obviamente já passei por esta fronteira de perder alguns amigos, claro que quando os revejo sinto um claro desconforto, mas não há nada que o tempo não apague, ou não há nada que o tempo não leve, ou ainda a verdade vem sempre ao de cima e a mentira tem perna curta.
Às vezes também penso para não me auto culpar, se não ficaram, se não resistiram como meus amigos é porque não tinha de ser ou é porque não fui merecedora dessa amizade ou ainda porque não eram mesmo meus amigos. Seja como for, o que lá vai, lá vai, não podemos agradar a gregos e troianos e eu de facto, confesso, tenho mau feitio.
Existem vários tipos de amigos, é certo, e eu aqui não vou enumera-los, vou apenas falar daqueles amigos que me acompanham hoje.
Os meus amigos do colégio, que os encontro muito raramente, mas que sei quem são, os do Liceu, da Faculdade, os dos escuteiros, os da infância, vizinhos, filhos dos amigos dos meus pais, os de varias fases da vida e que permaneceram até agora, outros amigos que fiz por influência dos meus filhos, quer pela escola, quer pelas actividades desportivas onde estavam inscritos, os da praia, das férias, das caminhadas, os do trabalho e outros que eventualmente ainda possam vir a surgir.
Os do trabalho, eu costumo dizer que não bem amigos são antes, colegas. Porque os do trabalho queiramos nós ou não, temos de nos relacionar o mais cordialmente possível. Passamos metade do nosso dia-a-dia no trabalho, se não tentamos ter uma relação minimamente saudável e sofrível com todos, muito dificilmente estamos de bom humor no nosso local de trabalho. Contudo, existem excepções à regra, pois no trabalho tenho até alguns bons amigos.
Por a família estar em primeiro lugar, por ter uma família grande, por nos podermos ainda reunir todos em casa dos meus pais, é raro não haver um almoço de Domingo. A mesa vai ficando cada vez mais pequena, sãos os filhos, os netos, os bisnetos, mais os (as) namorados (as). O meu pai fica sempre contente por ter a casa cheia, ele quer pessoas lá em casa, acresce-lhe movimento, vida.
A minha família é como qualquer uma família, não é perfeita, é barulhenta, falamos todos nuns decibéis acima do normal, discutimos uns com os outros, relacionamo-nos melhor com uns do que com outros, é tudo uma questão de afinidades e personalidades mais compatíveis que outras, mas temos valores, princípios e respeito.
Somos todos diferentes, na personalidade e forma de estar na vida, fisicamente existem duas muito parecidas, todos um pouco mais ao lado do pai, a mãe ficou com a beleza só para ela, não distribuiu equitativamente pelos filhos.
Uma das diferenças entre os amigos e a família é que apesar de sermos todos diferentes uns dos outros, na sua essência, somos iguais. Podemos discutir e até zangar-nos mas o elo de ligação não se quebra, e sempre e quando é preciso estarmos lá, inquestionavelmente estamos e damos a nossa força a nossa presença.
Nunca deixamos um irmão só, nunca deixamos de apoiar num momento mais difícil, nunca por nunca ser um de nós se sentirá à margem do seu núcleo familiar.
03-06-2015